2 HA-LAPID ======================================================= Como acabou a Inquisição em Portugal A Historia da Revolução de 1820. pelo Dr. José d'Arriaga diz: Foi na célebre sessão em que Soares Franco apresentou o seu projecto sobre a lei da liberdade da imprensa, e que Fernandes Thomaz apresentou o seu relatorio, que Francisco Simões Margiochi, outro ilustre professor, propoz a abolição da Inquisição, dos juizes da inconfidencia, dos tributos vis, e apre- sentou o seu projecto sobre prisões. Abriu-se o debate acerca da Inquisição na sessão de 24 de março, que proferiu um elequentissimo discurso. Disse ele: Snr. presidente. - Como fui o autor do projecto sobre a abolição da Inquisição, sou justo, a mim proprio me sentenceio, devo ser o primeiro que arda nas fogueiras d'este tribunal. E' na verdade um tormento, e gravíssimo, o referir tantos horrores; e bem que os sabios deputados d'este congresso conhe- çam quaes sao os motivos porque deve ser abolido este tribunal, contudo é preciso que a nação veja ho- je os carceres da Inquisição, que veja os seus proces- sos, que sinta suas torturas e que ardem deante dela os seus cadafalsos. Darei pois uma noticia sucinta d'este terrivel tribunal, extraída das grandes páginas de sua medonha historia. E' esta relação que nos de- ve fazer estremecer, e não os preceitos do divino le- gisladador da religião cristã. "Horrorisemo-nos, pois; mas seja pela ultima vez. "Em tudo o que vou dizer não me referirei ás nações estrangeiras, referir-me-hei só a historia pa- tria; e ainda que a verdade n'este caso possa ser exa- gerada, nenhum escritor, nenhum pensador, póde imaginar cruezas que os inquisidores não imaginas- sem e preparassem. "Antes do meio seculo XVI o papa Paulo III ins- tituiu n'estes reinos por uma bula o tribunal da Inqui- sição, e foi este o presente mais funesto que podia fazer aos portugueses a colera celeste. "Esta bula foi recebida pelo rei D. João III, sem saber que recebia com ela a infamia e a desgraça d'este reino; sem saber que com ela ia destruir a glo- ria do seu reinado; sem saber que no futuro se diria que este reino tinha mais piedade nas preocupações de seu entendimento que no seu coração. "O primeiro que teve a desgraça de ser inquisi- dor geral foi um irmão do rei, foi "o cardeal Henri- que, que tambem foi depois rei". O orador passa depois a fazer historia das refor- mas dos estatutos; expõe como se fazem as denuncias, as prisões, e as torturas porque passam os presos, como se executam as barbaras sentenças; e descreve depois o auto de fé, tudo em linguagem nobre e sen- tida. E acrescentou em seguida; "Representemos agora a diferença que havia des- ses tempos horrorosos do terror que inspirava a vis- ta, o gesto e a voz, de um inquisidor com as emo- ções sublimes que nos inspira hoje um amigo da pa- tria. "Representemos esses dias horrorosos dos autos de fé e comparemol-os com os dias 15 de setembro e 1 de outubro de 1820. em que os portugueses se cha- mavam á liberdade e á felicidade. "A' vista, pois, do que tenho exposto, parece que o tribunal da Inquisição junta em si todas as feroci- dades e crueldades dos maiores tiranos. Vê-se a cíni- ca ferocidade ardente de Calígula nos fogos e nos ferros em brasa; vê se a ferocidade imbecil de Claudio no processo da Inquisição; vé-se a ferocidade sem fim, como sem vergonha de Nero no tormento do po- tro; vé-se a ferocidade hipócrita de Domiciano na re- laxação que faziam dos seus criminosos ás justiças seculares. "Mil e quatrocentos homens foram queimados; mais de tres mil pessoas foram exterminadas e des- graçadas. E se juntarmos a isto as familias que fica- ram desamparadas, os terrores que deviam nascer d'este tribunal e as molestias e as muitas consequen- cias d'ele, não faremos muito em asseverar que a In. quisição só pode egualar as maiores calamidades que teem afligido a especie humana, ás maiores calamida- des, incendios, terramotos, devastações, epidemias, guerras e fomes. "Serviu, pois, este tribunal para secar os louros da nossa gloria; serviu este tribunal para extinguir o entendimento dos portugueses; e serviu este tribunal para nos cobrir de vergonha. "Os navegadores que passavam á vista das costas de Portugal, olhavam para este paiz como inhospito, como habitado por selvagens ferozes, como para um paiz que está fóra da civilisação europeia; olhavam-no como habitado por homens crueis, como falsamente são acusados os hotentotes, e como verdadeiramente o foram os caraibas. "Parece, pois, que o processo (d'este tribunal fica já feito; e ainda que parece que este tribunal já não é senão um vulcão que não lança chamas, comtudo ainda de tempos em tempos ainda se ouvem trovões subterraneos; ainda a terra treme. Ainda depois do reinado de el-reí D. José muitos professores sabios da Universidade de Coimbra foram victimas d'ele; ainda depois muitos foram tambem suas victimas; ainda em nossos tempos vimos sofrer muitos benemeritos d'es- te paiz antes da celebre setembrisada. "Por consequencia parece que os portugueses de- veriam pegar em fachos, e queimar os tribunais da Inquisição; mas não; é preciso conservar abertos seus carceres, para se verem os seus fogos e comparai-os com o nosso estado actual. "E' prciso ir a esses carceres ouvir os gemidos dos desgraçados que sofreram tantas angustias, gemi- dos qne ainda duram e durarão, emquanto a nossa constituição não fizer mudar todos os nossos costu- mes, emquanto a mesma constituição não fizer mu- dar o entendimento e o coração d'aqueles que ainda o não tenham mudado." Este notavel discurso define perfeitamente o es- tado da questão, a importancia e o horror, que as no- vas gerações já sentiam por esse Portugal dos jesui- tas e inquisidores. O deputado Girão pediu em seguida a palavra, e disse que a Inquisição é um dos estabelecimentos que indicam maior degradação da especie humana, reinando com o despotismo, a estupidez e a supersti- cão.
N.º 036, Shebat 5691 (Jan-Fev 1931)
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