2 HA-LAPÍD ========================================= um só Deus, que tudo governa, e simu- lando o sinal da cruz, tocavam na fronte, nos labios e no coração, afirmando baixi- nho a soberania de Adonai. Desde que a liberdade lhes é concedida em Portugal, as consciencias despertam, os cripto-judeus revelam-se em plena luz. O capitão Barros Basto, fllho e neto de mon- tanheses maranos de Amarante, tornado judeu e ardendo de proselitismo, acolhe e favorece esta resurreição. Ele é o mestre, o pregador laico, o animador deste judais- mo renascente. Ele leva-nos hoje a uma das origens principais doste movimento de almas, numa das capitais da província de Traz-os-Montes. Estamos agora encerrados nas gargan- tas rochosas onde se secam os rios, e, olhando para os cimos deserticos, pensa- mos no psalmo: "Levanto os olhos para as montanhas: donde me virá o socorro?" O capitão diz: ha lobos por aqui, no in- verno, e falava-se ainda não ha muito tem- po, de salteadores de estrada." * * * Após 10 horas de trajecto, Bragança aparecia sob a chuva e na noite com al- guns telhados onde vacilam luzes. A' nos- sa chegada, um marano vem-nos saudar no nosso rustico hotel. E' um burguês no qual se nota o tipo semita. Sua mulher fi- cou catolica. A' volta dos filhos, a familia divide-se e luta. E' um drama de conscien- cias. O capitão ordena ao seu discípulo e mensageiro: "Amanhã á noite, reunião na Sinagoga. Mande avisar." Por falta de re- cursos, a Comunidade não tem ainda rabbi diplomado. Despertamos no silencio e no ar virgi- nal das montanhas, com o doce sussurro dum voar de pombas. E diz-nos galgando as ruas de empedrados desiguais e aguça- dos, entre casas toucadas de telhas aver- melhadas. Nas varandas enfeitadas de co- lunatas, por detraz de janelas em guilhoti- na, curiosos se debruçam e espreitam, ca- belos crespos, rostos morenos. O capitão diz-nos: «São todos maranos... poucos casamentos mixtos, ha seculos nesta re- gíão." Caminhamos lentamente, impedidos pela passagem de jumentos carregados de mólhos de urze e que, por vezes, param no bebedoiro duma fonte. No angulo de uma rua, uma placa indica que nasceu aqui, em 1621, Orabio de Castro. Sabio judeu, morto em Amsterdam, em 1687.Fo¡ prisioneiro da Inquisição, professor de medicina em Toulouse e medico do rei de França; regressou oficialmente ao judais. mo e escreveu panfletos violentos contra o catolicismo, um dos quais é uma dísserta- ção sobre o Messias. Ao longe, de cima da Cidadela de esti. lo mourisco, entre montanhas nuas e con- trafortes de Espanha, o capitão indica-nos um cabêço:-E o Alto do Sapato onde se juntavam os maranos, como os hugueno- tes nas cevênas. Lá baixo, o cemiterio que, detalhe ca- racteristico, tem quasí só lages e poucas cruzes. Ao som dos chocalhos duns reba- nhos de ovelhas e de Carneiros, cujo pas. tor nos saúda gravemente, o capitão ex. plica-nos--Aqui tudo traz a marca do ju- daismo, tudo o recorda, nem que seja por costumes deformados. O mercado realisa- -se ao domingo, os homens repousam á segunda-feira, fazem a barba á sexta-feira, vespera do Shabbath. Veja estes mortos caídos no campo da batalha em França. E nós lemos, sobre uma coluna datada de 1928: Sinai de Jesus Gomes, Abilio Augus- to Salvador, Augusto Nogueira e outros nomes tais como Henriques Rodrigues, Almeida, que nos são familiares. De repente somos abordados por um velhinho, cujo desbotado capote de romei- ra se assemelha a uma levita e que se apoia a uma bengala. Aperta a mão do senhor capitão, que cada qual conhece e venera. Os seus olhos piscam de alegria. E' um marano septuagenario, um antigo vendedor de jornais, apelidado o Sequinho. que educou nobre e piedosamente o seu filho soldado em Africa. O capitão pede-lhe para nos indicar uma casa onde poderia- mos ver uma mulher oficiar, porque são aqui as mulheres. quem contrariamente ao judaismo ortodoxo, perpetuaram a tradi- ção. As nossas primeiras tentativas são in- frutuosas. Entramos primeiro em casa de uma professora, que nos olha com des- confiança, como reconduzida á. epoca das perseguições. Ela defende-se:--as orações, os cantos, ignore-os. E' minha irmã que
N.º 024, Heshvan 5690 (Out 1929)
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