HA-LAPÍD 3 ====================================== os sabe... minha irma, que anda em via- gem. Agora, é em casa do shamash, o bedel da Sinagoga, muito iniciado, parece, no rito maranico. Mas na sua pequena sala, ela agrupou uma vintena de creanças, que veem aprender costura e leitura. Ela não pode, deante destes alunos, dos quais al- guns são cristãos, exibir o seu caro culto secreto. Ela contenta-se em nos mostrar, ás escondidas, alfabetos hebraicos nos quais os seus filhos começam a decifrar a lingua santa. Entao, vamos mais longe. Desta vez batemos á porta duma casa sordida, cujo odor nos apanha a garganta. Uma mulher idosa, de nariz aquilino, embrulhada num chale poeirento, um velho alto de fato re- mandado veem ao nosso encontro, na es- cada tortuosa. Eles desculpam-se: ah! se- nhor capitão! Senhora! Vossas Excelencias estao em casa de gente muito pobre! A sala é com efeito lastimavel: três ca- deiras, uma mêsa bancal; na alcova, um leito de pomposo ornato, mas que contem apenas uma enxerga. O Capitao pergunta: -"Para uma correligionaria vinda da longinqua França, quer dizer algumas orações." Então a mulher cobre a cabeça com um pano branco, que simula o Talith, o manto ritual; vai misteriosamente buscar a lampada sabática, tao pequena que se di- ria um brinquedo, e deu-a para as nossas mãos. Depois, ela olha para o oriente. O seu rosto sulcado pela miseria ilumina-se, os seus olhos rolam lágrimas, e, com uma voz tremula, psalmodia: -A benção que o Senhor votou Ao Sol, á Lua e a Jacob E a Abraão e a Isac E a Santa Sarah e Santa Raquel E a este povo peregrino... Quando terminou uma longa e estranha litania que nada tem de ortodoxa, e disse Amen, Senhor, o velho apresenta-nos um li- vro manuscrito, transmitido por seu pae, que foi carteiro, como ele próprio carteiro foi. Folheamos estas orações caligratadas, descoloridas pelo uso: Cantico de Moisés, Orações de Judit, de Daniel, de Tobias. do Anjo Rafael, Oração das Ameaças, Oração dos três meninos lançados ao fôgo pelo rei de Babilonia. E todas estas orações em por- tuguês, inspiradas nos livros apócrifos, mis- turadas por vezes com formulas catolicas, estão penetradas do terror da Inquisição e a ela fazem alusão, por simbolos mais ou menos velados. A velha conta: "Os meus pais prati- cavam aqui mesmo o culto. Nós assentava- mo-nos no chao para que os visinhos nao nos vissem." Como observamos nas paredes agumas gravuras, scenas dos evangelhos, madonas ou santos, o velho abana a cabeça: "Ah! E' para salvaguardar as aparencias... mas nós não olhamos para elas, eles nao são dos nossos." O Capitao levanta-se: "Esta noite na sí- nagoga, nao é verdade! Os velhos pro- metem: uOh! sim, nesta noite, com satisfa- ção." Eles desculpam-se ainda: ::Vossas Excelencias estão em casa de gente muito pobre!" Nove horas da noite, na sinagoga. Uma escada de madeira, uma sala branqueada de cal, onde sessenta e tal fieis nos esperam. Raparigas, segundo um carinhoso costume, lançam-nos flores. E depois instalamo-nos na sala do oratorio onde arde a lampada etema. Um estrado, alguns bancos, o he- khal. que contem as taboas da Lei e que enquadram dois ramos de flores artificiais. Uma mulher abre o armario sagrado, todo forrado de sêda rosa agaloada de ouro e salpicada de ingenuas florinhas. Como nos espantamos um pouco destes enfeites, que não nos parecem tradicionais, o Capitao sorri: -"Mas o templo de Jerusalem devia ser ainda mais sumptuoso!" Contudo ele faz sinal á mulher para fechar o santuario. E' preciso, diz ele, despejar a pouco e pouco o verdadeiro culto dos seus costu- mes parasitas, que subsistem da mistura das religiões. isso será o meu trabalhou: O capitão vai pregar e oficiar. Olha para as suas ovelhas, á esquerda, os homens, ope- rarios, pequenos burgueses, comerciantes, cultivadores, dois ou três soldados em uniforme, dois ou três estudantes de capa, vindos talvez por curiosidade, A' direita, mulheres, todas do povo, de lenço na ca- beça e cobertas com chales de côr desbo- tada como os seus rostos. Algumas jovens mães de tez palida e olhos cavados aper-
N.º 024, Heshvan 5690 (Out 1929)
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