2 HA-LAPID ======================================== uns aos outros, fraternalmente, como se pertencessem todos a uma única e nume- rosa família - cujos membros deveriam intensificar sempre a evangelização da sua Nova Lei, até que um dia para êles surgisse, enfim, numa aurora bendita, a "Terra da Promissão"... Sacrificava-se, então, o cordeiro imacu- lado-que deveria ter mais de oito dias e menos de um ano de idade. Durante uma semana, apenas, deveria comer-se "pão ázímo" -pão não levedado, feito somente de água e farinha, sem o menor indício de fermentação. Êsse pão, duro e insípido, quási laminar e perfurado-como se fora uma espécie de bolacha...-é talhado em rodelas circulares, não havendo nunca inter- rupção durante o tempo do seu fabrico, desde que a massa pode ser manipulada até à sua breve cozedura num forno muito quente. Ao comer-se êsse pão ázimo e duro, todos deverão relembrar as penosas vicissitudes que os hebreus sofreram no Egito e, meditando bem, esforçar-se-ão por temperar os corações e as almas nas mais duras provações. de maneira a poderem ser enfrentadas e vencidas, com resignação e estoicismo, as mais rudes surpresas da vida futura. E na constância dessa mística reli- giosa reside, afinal, o segredo da perseve- rante vitalidade do povo hebraico-que, embora impiedosamente perseguido, man- tem em absoluta pureza a devoção sincera da sua crença e a prática submissa dos seus costumes tradicionais... Vítimas inocentes dos horrores da guerra actual, perseguidos e humilhados, sem Pá- tria, sem lar e quási sem família, numerosos judeus refugiaram-se em Portugal-seguro "porto de abrigo" e zona pacífica da Europa, com uma janela aberta sobre a vastidão imensa do Atlântico. Quási todos aqui aguardarão apenas a oportunidade de emigrarem para a América do Norte-em busca de trabalho e em demanda da Feli- cidade que perderam. Fixaram-se muitos deles na cidade do Porto, onde encontraram sempre um acolhimento carinhoso, de sin- cera e franca hospitalidade. E todos se confessam penhoradamente gratos à popula- ção portuense e às autoridades-que, de algum modo, conseguiram até minorar-lhes a desventura duma existência infortunada. Aproximava-se agora a quadra solene da Páscoa dos hebreus e, embora não pudessem sacrificar, neste ano lutuoso, o cordeiro imaculado, não queriam deixar de comer durante aquêles oito dias o "pão ázimo"- que, presentemente, simbolizaria, num sa- crifício de humildade e de resignação, o estímulo para suportarem com heroísmo os lances mais dolorosos da vida futura. Obtiveram autorização legal e, sem perda de tempo, improvisaram, numa pada- ria desta cidade, as "suas instalações" para a manipulação e cozedura daquele pão não levedado-que vai ao forno em rodelas laminares de massa, suspensas de varas de madeira, durante dois ou três minutos. Toda a comunidade judaica residente no Porto-homens, mulheres e crianças, inte- lectuais e operários, ricos e pobres...-se apressou em colaborar, espontânea e gracio- samente, nesse trabalho de intenção votiva - que se transfigura enfim numa eloqüente lição de civismo e num exemplo edificante de nobre sacrifício por um Ideal, cuja tra- dição se perpetua e se espiritualiza na admi- rável realização dum ritual de mística e sincera religiosidade. Surpreendemos ontem, em plena labo- ração, essa curiosa e improvisada padaria da colónia judaica do Porto. Trabalhava-se em fraterno e alegre convivio-como se aquelas criaturas tivessem esquecido, por momentos, a trágica desventura da sua existência tormentosa. E, como que advi- nhando no que meditavamos, um simpático israelita, de barbas muito brancas e de olhar muito sereno, informou-nos, solícito e atencioso: -Isto para nós representa a continui- dade do nosso culto religioso-como se estivéssemos, de novo, nos nossos antigos lares. A Páscoa é a nossa "festa sagrada" e, durante essa semana, nenhum de nós comeria outro pão, que não fosse "pão ázímo"-ainda que disso dependesse a nossa própria vida... Ao saboreá-lo, assim duro e insípido, meditaremos, uma vez mais, nas injustas e violentas perseguições que o povo hebreu tem sofrido, sem nos esque- cermos nunca que a hora da justiça e da Liberdade há de soar também,-quando, no caminho do Senhor, encontrarmos, por fim, a gloriosa "Terra da Promissão"... De O Primeiro de janeiro, de 27-3-1941.
N.º 104, Nissan-Yiar 5701 (Mar-Abr 1941)
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