6 HA-LAPID ========================================= Admoestado com muita caridade... (DOCUMENTO COMPROVATIVO) O Sr. Dr. António Baião, Director do Arquivo Nacional da Torre-do-Tombo, no seu livro Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa, transcreve do processo do cristão-novo António Soares, o seguinte relato do tormento a que este crípto-judeu foi sujeito: ".. E logo na casa e lugar do tor- mento estando ai os senhores inquisidores e sendo o réu presente lhe foi dado jura- mento dos Santos Evangelhos em que pôs a mão sob cargo dele lhe foi mandado que dissesse verdade e lhe foi dito que pelo lugar em que estava e instrumentos que nêle via poderia entender qual era a dili- gência que com êle réu estava mandado fazer pelo que para a poder escusar o tornam admoestar com muita caridade da parte de Cristo N. S.. queira confessar suas culpas para com isso alcançar a misericórdia que nesta mesa se dá aos bons e verda- deiros confitentes e por o réu dizer que não tinha culpas que confessar foram cha- mados os ministros e o réu despoiado de seus vestidos e assentado no banquinho. pelos senhores inquisídores foi protestado que se êle réu no dito tormento morresse, quebrasse algum membro ou perdesse al- gum sentido a culpa fósse dêle réu e não dêles senhores inquisídores, ordinário, depu- tados e mais oficiais e ministros do Santo Oficio, pois com tanto atrevimento se punha a tão grande perigo e saúde de sua vida. E por os médicos e cirurgiões dizerem vendo e apalpando pelas costas ao réu que se queixava de dor em uma espádua direita de doença que tivera de anos a esta parte. e vendo que havia nela alguma lesão disse- ram que convinha dar-se-lhe tormento no potro aonde logo foi posto e lhe puzeram os cordéis em tódas as oito partes aonde de novo lhe foi feito o protesto pelo senhor inquisidor na forma acima dita e o admoestou de novo com muita caridade e por dizer que não tinha culpas que con- fessar lhe foram dando a primeira volta com tódas as ditas oito partes e o senhor inquisidor o foi admoestando que não tinha que confessar, que era cristão, repetindo esta palavra e dizendo quando o admoestavam mas que morra, que era cristão, que sobre os senhores inquisidores havia de ficar, que não fizera tal coisa, e sendo admoestado com caridade que confessasse, disse que não queria confessar, que o matassem e caindo no que tinha dito que não queria confessar tornou a dizer que não tinha culpas que confessar e tornou outra vez a dizer que não queria, que não tinha que confessar e lhe deram segunda volta em todos os cordéis e sendo admoestado não disse palavra mais que dar ais, misericórais de Deus me favoreça pois me não crêem, ela me socorra, Jesus seja com a minha alma, estou acabado, dizendo estas palavra; em tom como que cantava e sendo outra vez admoestado respondeu: -Não me digam nada que hei-de morrer pela fé de Cristo e logo lhe foram dando a terceira volta em todas as oito partes e êle dizendo Misericórdia de Deus me valha, não tenho que confessar, sou cristão, não me digam nada e logo lhe foram dando quarta volta e 0 foram admoestando com muita caridade sem ele falar palavra, nem dar um ai, só que se calassem que era cristão e logo lhe foram dando cinco voltas e o tornou o senhor inquisidor a admoestar com muita caridade da parte de Cristo que confessasse respondeu: -Sou cristão, não me digam mais nada e se lhe deu sexta volta e sétima volta sem responder coisa nenhuma, sendo os cordéis grossos, quebraram alguns e foi dito pelos médicos e cirurgiões que se lhe tinham dado tratos muito expertos e que até os- cordéis delgados quebravam e sendo admoes- tado com caridade que pedisse tempo para cuidar suas culpas, respondeu que não tinha que confessar, que era bom cristão mas que o matassem e que lhe não dissessem mais palavra: -Querem que diga mentira não o hei-de fazer. E por dizerem os cirurgiões e médicos que tinha levado todo o tormento que devia levar e estar satisfeito do assento mandou o senhor inquisidor que o desatas- sem e o levassem a seu cárcere de que fil êste termo que êle senhor inquisidor assinou e eu, notário, António Monteiro, o escrevi. Diogo Osório de Castro --António Mon- teiro-Luís Alvares da Rocha. E suporiam estas criaturas de forma humana que tinham coração?
N.º 108, Kislev-Tevet 5702 (Nov-Dez 1941)
> P06