HA-LAPID 5 ======================================= Conto do Ghêto Não poder morrer Era noite; o silêncio era profundo; de repente o Shamash (diácono), julgou ouvir o martelo de pau com que chamava pela ma- nhã e a noite os fiéis à Sinagoga, oscilar levemente para cima e para baixo. O martelo não me deixa dormir, disse ele a filha, que também ouvia aquelas pan- cadas ligeiras e estranhas. É alguém que está a morrer na nossa rua, disse ela estremecendo; e imediata- mente cheia de terror começou a rezar em voz alta: Shamash Israel (Ouve Israel!) é o rabino que está a morrer. E então no meio da noite silenciosa, ouvia-se bater a todas as portas as tres pan- cadas sabidas do martelo. A filha do Shamash estremecia até ao fundo da alma cada vez que ouvia o pai bater às portas das casas. E quando a últi- ma pancada dada na última porta lhe tinha acabado de reboar aos ouvidos, disse: Foi agora que o rabino deu o último suspiro. E não pode deixar de verter lágrimas ardentes. A recitação dos psalmos sustinha a alma do rabino prestes a abalar, e as sombras da morte não se tinham ainda des- ranecido à roda dele. Pela manhã sentiu-se pior e então os discipulos começaram a lamentar em altas vozes. Foram buscar um grande pedaço de cera e um pavio, mediram a estatura do doente, e fizeram com o modelo um círio gigantesco. Cobriram o círio com uma mortalha, e levaram-no para o cemitério, onde o enterra- ram ao lado dos mortos. Apesar disso, tiveram que servir-se da mesma medida do corpo do rabino, para fa- zerem as seis tábuas do caixão. -Deus! Deus poderoso! exclamaram os discípulos, o que havemos de fazer para que o rabino não morra? Vamos reunir anos para ele, respondeu um deles, talvez que Deus nos ouça. Um dos discípulos foi-se de casa em casa, çom um papel na mão, no qual cada um mscrevia o número de anos, semanas ou dias que dava da sua própria vida para o rabino moribundo. A filha do Shamash estava justamente à porta na ocasião em que o discípulo passava com o papel. E tu, disse ele, dirigindo-se a ela, não darás nada para o rabino? Dou-lhe a minha vida, a minha vida tôda, disse ela soluçando. Escrevo o que acabas de dizer? Escreva! Escreva! 0 discípulo, então inscreveu a vida de Annelé. Logo no mesmo instante o rabino melho- rou e no dia seguinte enterrava-se o cadáver de uma jovem no cemitério. Era o da filha do Shamash. A jovem tinha hesitado tão pouco em ir fazer companhia aos mortos, quanto o rabino tinha repugnáncia em fazer desaparecer o seu nome do livro dos vivos. Nos primeiros dias de convalescença, o rabino andava alegre e bem disposto; re- cuperou um vigor extraordinário. Depois tornou-se triste e pálido. Ninguém sabia a que atribuir o mal. Efectivamente ninguém sabia, que pela noite adiante, quando o rabino estava assen- tado, estudando a guemarah, aberta diante dele, ouvia-se, em baixo, no pátio, um canto subtil; e que cada vez que o rabino abria a janela, apercebia defronte dele uma jovem bonita, cujo sorriso gelado pela morte, ele via brilhar até acima, por entre o véu das trevas. Agora, pensava então o rabino, podia ela estar livre e cantar como os pássaros do ar. E no silencio da noite, regava com as lágrimas as grossas páginas da guemarah. Uma vez por volta da meia noite, lamen- tosos gritos de angústia soaram à volta da casa; eram sons estranhos como os que são arrancados pela dor. Pouco depois, ouvio os vagidos de uma criança recém-nascida. Oh desgraça! exclamou o rabino, fui eu que a despojei dessa alegria. E todas as noites, desde então, começou a ouvir os mesmos vagidos entremeados das cantigas com que as mães embalam as
N.º 113, Tishri-Heshvan 5703 (Set-Out 1942)
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