HA-LAPID 7 ====================================== A Inquisição do Pôrto operando (Da História do Estabelecimento da Inquisição em Portugal, por Alexandre Herculano). (CONCLUSÃO) O ódio do antigo Carmelita não se limi- tava já aos que o tinham ofendido; era uma guerra de morte a tôda a gente de raça hebrea. Dirigindo-se a Mesão-Frio, cuja população não excedia naquele tempo a cento-e-trinta ou cento-e-quarenta habitantes, ouviu só num dia, o depoimento de quási trezentas testemunhas acerca dos cristãos- novos da vila. E' fácil de imaginar como as preguntas seriam feitas, como escritas as respostas, e quantos ficaram culpados. Em Vila-do-Conde e Azurara passaram-se factos análogos. No Pórto havia nove indi- viduos que tinham tomado o oficio de teste- munhas contra o judaísmo, jurando em quási todos os processos por parte da justiça. Entre eles distinguia-se uma Catarina Rodrigues, mulher pública da mais baixa esfera, que se prostituia até a escravos. O escrivão do tribunal, Jorge Freire, antigo recebedor de certas rendas da mitra, e até então assaz pobre, enriqueceu brevemente no novo ofício, exemplo que não foi baldado para os outros oficiais. Nada disto via o bispo, a nada atendia, cego pelo rancor. A própria Cata- rina Rodrigues achava nesse duro e terrivel sacerdote favor e trato benévolo. Quando os réus, a-pesar-de todas as dificuldades que lhes punham à própria defesa, alcançavam provar que as denúncias e depoimentos dados contra eles eram penas caluniosas, e não havia remédio senão soltá-los, os denun- ciantes e testemunhas falsas ficavam im- punes, e se algum dos agravados lhes movia acção nos tribunais civis, era de novo acusado e preso. A parte moderada que o bispo tomava na decisão das causas despertou o ciúme do inquisidor Rodrigues; mas este ciúme, que noutras circunstâncias poderia aproveitar aos réus, tornara-se inútil pela situação relativa dos dois membros do tribunal. Jorge Ro- drigues, vélho e paralítico, posto que hábil jurisconsulto, apenas opunha frouxa resis- tencia ao fogoso carmelita, que, educado num convento, não tivera ocasião de cursar os estudos canónicos. Assim, as sentenças em geral não representavam senão o voto incompetente do prelado, e o inquisidor de- legado, quando as achava injustas, limita- va-se a recusar publica-las em audiencia, ou a declarar no acto da publicação que o seu voto fóra contrário, mas que tivera de ceder à inflexibilidade de D. Fr. Baltazar. O promotor da Inquisição, João de Avelar, homem de costumes dissolutos, era, bem como todos os outros ministros e agentes do tribunal, criatura do bispo. Tinham-lhe con- ciliado o favor deste a violencia do seu génio e o profundo rancor que manifestava contra os cristãos-novos. No exercício das suas funções, João de Avelar não reprimia aquela, nem ocultava este. Quando lhe apresenta- vam um desses breves de protecção especial que os cristãos-novos costumavam comprar no mercado de Roma para se esquivarem às atrocidades do tribunal da fé, protestava logo contra ele, chegando a ponto de dizer, escumando de raiva, que era mais fácil deixar prostituir por el-rei uma filha sua, do que reconhecer a validade de tais breves. As audiências e julgamentos da Inquisição do Porto davam campo a cenas não menos apaixonadas da parte de D. Fr. Baltazar; cenas que são fáceis de imaginar, lembran- do-nos de que, como era natural, aqueles que tinham suscitado a perseguição, re- cusando dar as somas prometidas para a nova igreja, não foram dos últimos a entra- rem nos cárceres do Santo-Oficio. Henrique Luiz, um deles, foi conde- nado a dez anos de reclusão; mas o bispo achou repugnancia nos seus colegas a irem mais longe, e a condená-lo a vestir o sam- benito. Venceu, por fim, declarando que, se nisso havia injustiça, tomaria a responsabili- dade dela perante Deus. Pode supor-se quão acesa cólera deviam excitar no seu ânimo as testemunhas favoráveis aos réus, sobre- tudo quando os depoimentos eram precisos, e não achava meio de os atenuar ou de fazer titubear as testemunhas. Prorrompia não raro em afrontas contra esses que assim ousavam contrariar os seus intuitos. Os epítetos que lhes dava de cãis, cuspir-lhes na cara, eram amenidades a que Fr. Baltazar recorria às-
N.º 088, Heshvan 5699 (Out 1938)
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