8 HA-LAPID =========================================== -vezes para os conduzir ao silencio. Os abu- sos dos ministros subalternos condizíam com este ódio fanático do bispo, ao qual a ce- gueira da paixão levava quási à demencia. Alguns oficiais honestos, a quem aquelas demasias repugnavam, demitiam-se dos car- gos, e por esse mesmo facto os agentes que debaixo da capa do zelo encobriam as suas ruins tenções mais facilmente podiam reali- zá-las. O primeiro escrivão do tribunal ha- via-se escusado por desgosto desta espécie, mas o que lhe sucedera, membro como ele do cabido, soubera amoldar-se melhor às ideas do prelado. O carcereiro e o guarda dos cárceres também pertenciam ao bando dos zelosos. Antigo criado de D. Fr. Baltazar Limpo, o carcereiro escolhera um guarda que fosse instrumento da própria maldade. De con- ceito, os dois oprimiam por mil modos os réus para lhes extorquiarem dinheiro e sub- meterem-nos a todos os seus caprichos, fazendo ao mesmo tempo acreditar ao bispo que as suas mãos eram puras, e que só o zelo os tornava rigorosos até à crueldade. A carceragem de cada preso era de ordinário uma ou duas dobras; mas quando a riqueza verdadeira ou suposta, de alguns deles, acendia a cubiça do carcereiro, a taxa subia, às-vezes, a vinte. A sorte dos que não podiam pagar era desgraçada. O guarda completava por sua parte as extorsões do carcereíro. Sem dinheiro não se abriam as portas para os advogados e solicitadores falarem aos presos, e nem sequer para entrarem nas lôbregas masmorras as cousas mais necessárias à vida. Posto que casado, António Pires (era este o nome do cha- veiro) parece que achava longas e tediosas as horas passadas nos claustros inquisito- riais. Havia ali duas cristãs-novas, mãi e filha, julgadas já, e cuja sentença fora cár- cere perpétua com o trajo chamado sambe- nito. Estas mulheres estavam à merce de António Pires, e palavras de um amor brutal soaram, acaso pela primeira véz, naqueles recessos humedecidos do suor de mil agonias. A donzela foi deshonrada. Essa infeliz, para quem na primavera dos anos tinham deixado de existir as torrentes da luz do sol, os aspectos do firmamento, os verdores dos bosques e campinas, a alvorada e o crepús- culo, o aroma e o matiz das flores; para quem, ao passo que, por assim dizer, se lhe afundira ante os olhos a natureza fisica, se lhe haviam afundido também todas as espe- ranças do mundo moral, e cuja vida de dila- tados horizontes só ficara povoada por dois sentimentos, o da perpetuidade do cárcere e o das saüdades inúteis, devia ser bem des- graçada! A masmorra era-lhe como pátria adoptiva; o sambenito, vestidura e mortalha, (Que pensamentos seriam os seus quando prostituída, e tendo por testemunha da pros- tituição um amor de mãi, a consciencia lhe disse que descera ainda um degrau que pa- recia não poder existir na escada das misé- rias da vida? Em circunstâncias daquelas, o coração humano ou estala, ou se abranda à terrível grandeza de um coração de demónio. Verificou-se o segundo fenómeno. A ví- tima de António Pires chegou a gloriar-se da deshonra, mostrando orgulho de trazer no seio o fruto do torpe adultério. Eumenide no meio das suas antigas companheiras, era ela quem completava os tratos da polé e do potro, quando os esbirros davam tréguas ao martírio. A humilhação e as privações das que eram infelizes sem serem infames como que lhe refrigeravam o espírito. Os seus caprichos eram lei. A' menor desobediência, a vingança descia pronta; o feroz António Pires distribuía com mão larga os maus tra- tos e as injúrias, impedia a entrada dos ali- mentos, e inventava quantas opressões lhe sugeria o seu animo danado. Se acreditar- mos as memórias dos cristãos-novos, estes factos eram públicos no Porto. Não podia, portanto, o bispo ignora-los, E D. Fr. Bal- tazar Limpo, esse homem, que. poucos anos depois, trovejava no Vaticano contra a imensa corrupção de Roma; que fazia curvar a fronte do Pontífiçe diante das ameaças proferidas por ele em nome de Deus, tolerava os dra- mas repugnantes que se passaram nos cala- bouços da Inquisição, como se fossem uma obra pia e digna de louvor. Exemplo tre- mendo dos precipícios a que podem arras- tar-nos as tres piores paixões humanas: o fanatismo, a vingança e o orgulho insensato. OBRA DO RESGATE Milah-No dia 6 de Novembro de 1938 12 de Hechvan de 5699), foi recebido na liança de Abraham o marano Guilhermino da Silva Ranito, de 19 anos de idade, natu- ral da Covilhã; recebeu o nome de Samuel. ----------------------------------------- ESTE NÚMERO FOI VISADO PELA COMISSÃO DE CENSURA
N.º 088, Heshvan 5699 (Out 1938)
> P08