6 HA-LAPID ========================================== sarrafusca, o incorrigivel partidário do Sr. D. Manuel ou do Sr. D. Duarte Nuno, e não se sabe que entidade subtil, salitrosa, que não deixa rasto, Providência do Mal dentro das pequenas democracias atontadas e petroleiras. O que assombra é que depois da qua- rentena a que o Presidente do Conselho se submeteu durante todo o dia, as autorida- des da véspera ou autoridades recém-inves- tidas, os oficiais da coniura ou os oficiais neutros, os politicos que chegavam ao galarim e os que nunca perderam a posição, cabecilhas ou mandões, não roubassem um minuto à intendência, à neutralidade, à cobardia, ao gaudio do triunfo, e deixassem matar aquêle homem como um viandante numa estrada deserta, sem ninguém lhe acudir! Àparte Cunha Leal, que vemos debater-se impotente e afogado na maré de loucura, trepidando de desespero heróico. os outros escondem-se, somem-se, esguei- ram-se, passam à sucapa, relampeiam ao longe, chegam tarde. Ratazanas, vermes, sombras, espectros. Êsses oficiais de ma- rinha, todos ou quási todos, onde se mete- ram? Não acabam de saír das alfurjas os revolucionários civis? Os colegas, ontem tão poderosos, não têm modo de chamá-lo para o seu abrigo? Ninguém de pêso e de rasgo pega daquele homem e o leva quer da Avenida Miguel Bombarda, quer do Arsenal, o oratório de condenado à morte do Arsenal. Porque se esvaem, nunca mais vêm, não querem saber, ante- põem outros cuidados, ou chegam tarde e a más horas...? Por isto. porque não há uma direcção em Portugal. Há uma classe dirigente, mas bizantina. Na hora de crise, mentores, chefes, capitaneadores fundem-se na multidão gregária de que são reses. O drama e tecido com tôdas estas fata- lidades. Na nossa pobre vida humana, dentro do curso que nos leva, cada um é responsável pelo modo como braceía, sem dúvida; as reacções do indivíduo há, porém, que observa-las dentro do corpo social para compreende-las. A tragédia de 1921 fêz patentear a falta de alma na sociedade por- tuguesa, que é como a luz numa casa. Como se explicaria. não sendo assim éste matar as-cegas? António Granjo, soldado garboso da Flandres e de Trás-os-Montes, amassador de ideal, devoto da liberdade. homem de bem e de boa fé, desprovido de inveja; e de rancores, que sabia ler nos olhos do seu amigo, aparece nos meus sonhos imenso, Polvoroso, ensangüentado. Creio que e pecha comum em certa altura da vida começar-se a ter horror da acção e invencível tendência para sonhar. Sonhar, acordado que é uma forma de catalepsia espiritual. O pensamento à solta vai por estranhas veredas até regiões absurdas em que, ao dar-se conta, acabamos por nos sentir entontecidos quando não escanda- lizados. Senão a tôda a gente, a mim sucede-me sonhar assim. Nesses sonhos ocupa-se-me o entendimento com cousas que podiam ter sido e não foram por um triz, com o desvio que o deslize fluvial da existência sofreu desta ou daquela nonada, com os pecados vélhos, com os sêres que me foram queridos e já não são dêste mundo. E veio- -me muitas vezes, como o divino Laércída, descer pela "avenida dos altos ciprestés e salgueiros bravos à mansão escura de Aides". E também avança para mim, condensando-se sua sombra vaporosa na neblina baça, a multidão dos defuntos. Vem primeiro meu pai, com branco sorriso no rosto amaciado e lágrimas amantfssimas nos olhos; logo após, uma face ebúrnea de amada: a velha tia que me contava histo- rias de pasmar e que deu protoplasma à minha psique de escritor. Depois outras figuras de segundo plano díscorrem filmà- ticamente na minha retina subjectiva. E entre elas eis que avança, carão largo, leal, género do marchante cuja palavra era ouro, António Granjo. Falam-me e eu ouço-lhes as vozes aladas, circunstanciais, de uma suavidade de cetim, que não fazem mais ruido que pétalas de rosa desfolhan- do-se da roseira para o relvedo. E Antó- nio Granjo chora sôbre si e nós todos. Ao pobre grande homem, pelo que foi. pela morte que padeceu, pelo juizo recta que lhe mereci, quero consagrar éste mo- desto livro em que perpassa outra figura do povo, grande, trágica, e batida pela flama que jamais se apaga. ----------------------------------------- ESTE NUMERO FOI VISADO PELA COMISÃO DE CENSURA
N.º 097, Shevat-Adar 5700 (Jan-Fev 1940)
> P06