2 HA-LAPID =========================================== A MATANÇA DOS CRISTÃOS-NOVOS (19-20-21 DE ABRIL DE 1506) "Também em Lisboa se amotinou por esse tempo o vulgacho; e tal foi o desatino e fúria ali erguida, que a pique estiveram os judeus todos, recentemente (como disse- mos) convertidos, de indignamente perece- rem. O caso sucedeu assim: Tinham pouco antes chegado a Lisboa muitos navios mer- cantes da Bélgica francesa e da Alemanha, e a cidade se achava mui nua de burgueses, por se terem dela retirado em razão do contágio; muitos dos que, todavia, tinham ficado se juntaram, em 19 de Abril, na Igreja de S. Domingos para os ofícios divinos. Há na igreja, da parte esquerda, uma capela com a invocação do Senhor Jesus, mui devota e mui frequentada pelo entranhável acatamento dos fiéis. Assenta sobre o respaldo do altar um crucifixo, em cuja chaga do lado engasta um cristal, que a cobre; e ora como pusessem nela os olhos muitas pessoas, e com eles a imagi- nação, e vissem sair dela um luzeiro, entra- ram a bradar grande milagre!, pois a Divindade Celeste se representava ali com tais pasmosos sinais. Um daqueles hebreus, que pouco havia se alistaram nas bandeiras do baptismo, negava a altos gritos haver milagre: que nem num lenho seco cabia poder faze-lo. E bem que muita gente duvidasse do milagre, nunca convinha em tal ocasião nem a tal sujeito empregar suas palavras e afinco em desmaginar um judeu, a gente que tão encarnado tinha nos senti- dos semelhante ilusão. A multidão, que naturalmente é dessi- suda e assomada, eivada agora com vis- lumbres de religião, entrou a bramar de ouvir um cristão denegar crédito a um milagre. Tratam-no de aleivoso e malvado judeu, traidor à fé, cruel e desorado inimigo, digníssimo de todos os tormentos e da morte. Foram crescendo sobre ele os vitu- périos de toda a parte; e tanto se escandece a cólera naquela mó de povo, que arreme- tem com o homem, travam-lhe dos cabelos, levam-no de restos, e atormentando-o até o rossio, que espairece o convento, e ali cruelissimamente morto o despedaçam; erguem de súbito uma fogueira, onde arre- messam os troços do cadáver. Acorreu a tal motim toda a gentalha, à qual um frade fez uma pregação acomo- dada a despertar vinganças de religião. Com a mui azeda exortatória a multidão, que de seu natural toma súbito furor, dis- parou em veemente feridade. Tinham já dois frades alçado um crucifixo, e empu- xado a plebe com altos gritos a matanças; e alternando como em choro, bradavam: Heresia! Heresia! Dai cabo dela que é maldita; extiagui esta gente abominável. Pojam em terra, vindos das naus, franceses e alemães, e se entremeiam com os lusita- nos já cevados na despiedosa chacina. Consta que computavam a 500 homens os que empreenderam o facinorosíssimo des- troço. Atravessados de ruindade e desatino, se arremessam a investir ferina e bruta- mente com os miseros judeus: degolam, apunhalam, e ainda palpitantes e com vida os arrojam nas labaredas. Que naquele mesmo rossio, em que o primeiro ardera pelo agravo que sentira o povo dele, ron- cavam ia para tais cruezas amiudados incêndios, porquanto com muito regozijo e, pressa escravos e gente do mais vil jaez acarretavam lenhas, a que não desfalecem chamas para a perfeição de tamanho des- mandamento. Quebrariam corações de bra- vias gentes os prantos lamentosos das mu- lheres, magoadíssimas suplicas dos homens e os maviosíssimos clamores tão gerais. Mas tão despidos andavam de humano os perdoar nem a idade nem a sexo, com antolhos para tais resguardos, algozavam por maneira que 500 pessoas dos hebreus. E como o boato daquela carnificina se espalhasse no dia seguinte pelas aldeias do termo, vieram delas mais de mil facino- rosos verdugos agregar-se ao bando dos malfeitores da cidade: com o que refrescou a morte e justiças. E em razão de toda a familia judaica se ter, de temerosos, escon- dido em casa, lhes arrombavam as portas e entravam dentro a degolar, como carni- ceiros, homens e mulheres e as donzelas
N.º 149, Shevat-Elul 5711 (Jan-Ago 1951)
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