2 HA-LAPID ========================================== Os estudos recentes de Joaquim Ben- saúde, Moisés Amzalak, Barros Basto, abri- ram-me finalmente novo horizonte, apon- taram-me os forais, as ordenações e outros historiadores como Graetz, Herculano, Fon- toura da Costa. Joaquim de Carvalho e o padre António Vieira, entre tantos outros, incluindo Mendes dos Remédios e Lúcio de Azevedo, estes nem sempre amáveis e justos. Lendo-os, a ferida que sangrava, sarou. Hoje sei o que é ser judeu em Portugal. Hoje sei que sem falsa modéstia nem alarde pretencioso, me posso orgulhar dessa quali- dade de judeu em Portugal. Hoje sei que houve judeus dignos em todos os transes da nossa história. O sangue judeu correu sempre que foi necessário sacrificar a vida ao interésse da pátria, a alma judaica sofreu, vibrou, venceu como a alma de qualquer outro português. É essa epopeia, tantas vezes e tão injus- tamente esquecida, que me proponho re- cordar. Falando numa reunião culta que se realiza numa associação israelita, poucas novidades vos posso trazer. Grandes lacunas terá o meu estudo. Entendo. todavia, que é nosso dever, dis- cutir e arrancar do esquecimento imerecido os grandes feitos dos judeus em Portugal, é repetindo as discussões sobre este tema que podemos fazer justiça a quem tanto tempo ficou olvidado. Nunca será exagerada a repetição e é essa ideia que dá alento para abordar aqui um tema que, por fazer vibrar o meu entu- siasmo, não deixará de ser grato à vossa apreciação. * Olhemos em traços largos para a histó- ria pátria. Observemos o aparecimento da nacionalidade, talhada e criada com suces- sivos gestos de firme e corajosa iniciativa. Estavam nessa época instalados há muito, judeus em toda a Peninsula Ibérica. Sob o dominio muçulmano viveram com tanto sossego como os mosarabes, cristãos. Devemos procurá-los entre os vencidos? Eu encontro-os lutando ao lado dos guer- reiros lusitanos. Acabara o periodo áureo de estudo, progresso e paz nos reinos árabes. A ambi- ção dos emires, as dissenções, a guerra civil tinham fraccionado o grande e pro- gressivo império muçulmano da península. Berberes ou Almoadas (unitários) sangui- nários, fanáticos e intolerantes dominavam e impunham o seu poder, destruindo os requintes da civilização dos reinos almo- rávidas. Abd-al-Mumem, segundo chefe desses berberes almoadas (unitários), ordena a perseguição aos judeus, obriga-os a abjurar a sua fé ou a emigrar. As sina- gogas são assaltadas e saqueadas ou des- truídas. Grandes academias judaicas como as de Lucena e Sevilha são encerradas. Há progromes em larga escala. O judeu que não abjura a sua fé tem de emigrar; é o reino cristão de D. Afonso VI que o acolhe. É Afonso VI de Castela que os protege, e a luta de libertação que Afonso VI lança e que é continuada pelos seus sucessores, entre os quais conto D. Afonso Henriques e outros reis da nossa 1.a dinastia, não é guerra de propagação da fé, é guerra de conquista e de engrandeci- mento do reino, é guerra em que podiam viver irmanados judeus e cristãos na defesa de interêsses comuns. Para provar que assim é, bastaria lem- brar a aliança de cristãos com emires muçulmanos; as aventuras do célebre Cid combatendo ora cristãos à frente de sarra- cenos, ora estes à frente daqueles; a batalha de Zalaka em que 30.000 sarracenos com- batiam da parte do reino de Lião e de Cas- tela, ao passo que numerosos esquadrões de cavalaria cristã estavam integrados no exército de almorávide Jussuf: a pretensão de Afonso VI de que o Infante D. Sancho fosse seu sucessor, embora filho de Zaida, muçulmana de Sevilha; a aliança de D. Afonso Henriques com Ibn-Kassi; os conflitos dos nossos primeiros reis com o Papa, então no auge do seu poder tem- poral. É Alexandre Herculano, o maior dos historiadores portugueses, que escreve: "Ordinàriamente ao lermos nos nossos historiadores e cronistas a narrativa da reacção cristã contra a conquista muçul- mana no território chamado Portugal,... O complexo dos variados acontecimentos que constituem esse grande facto, repre- senta-se-nos na imaginação com a luta de dois povos, cada um dos quais compacto e homogêneo em si, busca, não a posse que dá o triunfo, mas uma existência exclu-
N.º 131, Shevat-Adar 5706 (Jan-Fev 1946)
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