6 HA-LAPID ======================================= O JUDEU (CONTO) POR FERNANDO ALBERTO PIMENTEL Ele morava ali perto, mesmo à beira da grande fábrica, num recanto de arvoredo que enquadrava a sua humilde barraca feita de madeiras e de latas velhas. De dia andava esmolando, umas vezes perto, ou- tras vezes bem longe, tão distante que ninguém sabia por onde andava. Mas o certo era que, ao cair da tarde, o velhote, o judeu, que tal era a sua raça, conhecido por Abraão, aparecia, e arrimado ao cajado, mirando o chão, as pedras da rua, porque já não podia andar erecto e se deslocava até à porta da fábrica; e, num gesto auto- mático, porque desde há muito o fazia, estendia a mão aos operários, que, sorri- dentes, ao bater das cinco, saiam em tor- rente, palrando sobre coisas variadas e pueris, tal como crianças azougadas após a última aula. E, embora fosse alvo dos mais variados chistes, de piadas e pergun- tas brejeiras, o judeu permanecia imóvel, e nos seus lábios delgados e descorados aparecia a bailar um sorriso de bondade, um sorriso suave, até o José António, que antes de lhe entregar a esmola tinha inva- riàvelmente este dito: -O que tu queres é aguardente, não é, judeu? E ele algumas vezes murmurava, sem perder o seu sorriso: -Sabe-se lá, sabe-se lá! Depois de colher as esmolas, ia para a porta da choupana e apareciam então as crianças, a quem ele na sua fala doce e melodiosa cofiando as suas "barbas cor de linho", contava histórias que eram o en- canto e o passatempo da criançada. E tal era o hábito daqueles garotos que, mal ouviam o apito da fábrica, às cinco horas, logo iam de corrida procurar o judeu. Era um encanto vé-los. O quadro tinha poesia; no meio o judeu e de volta, acocorados, os miúdos atentos. Enquanto o velho ia fa- lando, aqueles seus olhos cinzentos, esper- tos como dois ratinhos, adquiriam ainda mais brilho, tinham a luminosidade arre- batante das tormosas tardes de Maio... Quando viera para ali, ainda era rapaz, ainda o seu corpo se mostrava erecto e os seus braços fortes para trabalhar. Não casara. Vivia então para o trabalho, vivia para a sua fábrica, que, quando ele enve- lheceu e se tornou fraco, o mandou em- bora. Os seus vizinhos clamaram que era uma injustiça, todos lhe queriam dar amparo e, quando as vozes se erguiam contra a injustiça praticada para com o judeu, ele, resignado, com os olhos mais luminosos do que antes, e voltados não se sabe em que direcção, replicava: -É a lei da vida. Eu hoje, voces amanhã! Vira a grande fabrica erguer-se, vira, com os olhos rasos de água, a triste debandada daqueles que moravam-que tinham as suas cabanas-nos terrenos que a fabrica ia invadindo com as suas linhas rectas, as suas chaminés fumegantes, que manchavam a claridade quase transparente do céu. Quando. nessa tarde, ele viu os últimos partirem com os trastes às costas, ele, sen- tiu-se só, avaliou quão triste e solitária era a sua vida. Estava sem amigos, as suas forças haviam desaparecido e valia-se do cajado para caminhar. Então voltou-se para as crianças, criou-lhes amizade, sen- tiu-se respeitado e venerado e, no seu in- timo, quando à noite recordava os aconte- cimentos do dia, pensava: -Ainda valho para algo! A todos metia espécie o que ele fazia ao dinheiro que angariava; e, ao pergunta- rem-lhe como o empregava, o velhote, o Abraão, retorquia com espanto: -Que faço eu ao dinheiro? Que pode fazer ao dinheiro uma pessoa que o não tem? Mas, mesmo assim, ninguem acreditava nele. E murmuravam: -É esperto, não cai. Vê-se que é judeu. A meio do inverno, a fábrica fechou. O seu apito não tocou mais todas as manhãs e o Abraão deixou de ver os operários saírem, "alegres, como em Junho, um bando de pardais", para os encontrar todos os dias com as faces carregadas, os
N.º 148, Tishri-Tevet 5711 (Set-Dez 1950)
> P06