4 HA-LAPID ======================================= DAVID MORENO Morreu, estupidamente, em Angola, David Moreno. Um desastre de automóvel-ao que parece. Um gesto agressivo e raivoso do Destino a desembaraçar-se de alguém que o entontecia, há muitos anos, com a sua acção abnegada e inteligente. * * * Nada há, neste mundo das letras, de mais triste, do que o artigo "In-Memo- riam". Duplamente triste. Porque à tris- teza da lembrança, em si, do desaparecido, se une a tristeza da forma, forçosamente banal e monótona e até, algumas vezes, a de opinar, seu génio, de alguém que foi genial. Eis porque eu não quero acumular tristeza sobre saudade. O que se segue é uma manta de reta- lhos pequenos e desalinhavados...; e o que para mim representou a morte de David Mo- reno, não é coisa que se traduza em palavras. O Judaísmo português perdeu assim, um dos seus grandes obreiros. É que David Moreno com os seus defeitos e com as suas qualidades, representava o "Mara- nismo" -como poucos, até hoje, o soube- ram fazer. Educado no instituto Teológico israelita do Porto e um dos mais devotados discl- pulos do Capitão Barros Basto, David Moreno, personificou em si, durante al- gumas décadas o movimento da redenção do judaismo portugués. Não é fácil comprimir dentro de uma crónica -essa curta existência de... anos. Basta que a noticia fatal nos toque ao de leve, para logo faiscar da nossa memória um "filme" de longa metragem pleno de aventuras, de episódios curiosos e até inve- rosímeis. Formado em engenharia pelo I. I. do Porto, David Moreno podia, se quisesse, ter deixado, tanto no jornalismo como na literatura, um nome. Era vivo, rápido; possuidor de uma inteligência oportuna e quase sempre brilhante. Tinha "jeito" o feitio - valorizador por um bom gosto invulgar. Não quis. Em vez de escrever a vida - preferiu vivê-la. E como não era rico, nem nascera em Paris, nem sobre os seus pés se abriam alçapões da sorte-quis ele próprio projectar-se, num prodígio de habi- lidade, aos paraísos ambicionados. * * * Embora eu fosse mais ou menos, con- terrâneo de David Moreno. Pois que este nascera em Freixo-de-Espada-à-Cinta, só o vim a conhecer no Porto. No entanto conheci de cor o titulo de to- das as suas crónicas, publicadas nesta folha, onde hoje evoco o seu desaparecimento. O retrato de David Moreno, que salti- tara algumas vezes sob os meus olhos, ao folhear magazines-fixara-se para sempre na minha mente... E antes de o conhecer -já o conhecia: moreno, uns olhos claros permanentemente alvados, numa expressão mixta de sono e de sonho, um rictos de fadiga, de "blasé", arrepanhando-lhe um canto da boca; cabelo levemente encaraco- lado a surdir um chapéu de grandes abas. E por isso, quando naquela manhã de inverno, o descobri à porta da Sinagoga- senti o vermelhão das grandes horas! E fui até ele; e abordei-o..., e apre- sentei-me, seguidamente conversamos so- bre tudo e todos... Não lhe faço o necrológio, não! David Moreno não morreu- afastou-se de nós porque seu espirito luminoso, claro, genial, evoluiu e, em mundos melhores, certo, não esquece os entes caros que deixou na terra. Amílcar Paulo
N.º 150, Shevat-Tamuz 5712 (Jan-Jun 1952)
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