6 HA-LAPID ======================================== e popular compositor, chamado D. Ma- noel, predileto daquele rei, escreveu o Kal Nidré ao qual adaptou uma admirável música que judeu algum ouve sem emo- cão. Faz parte da cerimónia da noite de Kípur (Expiação). D Manoel foi também uma vitima do horrível monstro que era a Inquisição. Como quási todos os maranos dá-nos um exemplo de fé que não pode deixar de ser admirado. O seu amigo El-Rei D. Fer- nando, que assistiu á cerimónia e execus- são do auto, quiz libertá-lo com a con- dição de que êle, D. Manoel, se arrepen- desse publicamente e jurasse fidelidade á religião cristã. Esta proposta, aliás bene- vola, foi recebida e recusada com a maior repugnância. Mil vezes a morte preferiu D. Manoel Cantou então a sua última composição para o Kol Nidré, pronunciou o Shema Israel e lançou-se ao fogo que imediatamente o devorou. Esta melodia cantada já nos braços da morte pelo grande compositor D. Manoel, ficou sendo uma melodia tradicional que se ouve nos lares judaicos do mundo in- teiro e o seu ilustre autor é um vulto que vai ocupar mais uma página no horrivel martiriológio de Israel, martiriológio de que ele se pode orgulhar porque repre- senta um exemplo de fé e abnegação que nação alguma possue. Aproximadamente seis séculos são pas- sados, razão porque a sua origem estava já quási, por assim dizer, esquecida. O nussah (ritual) foi, segundo conta a tradição, composto na península Ibérica nos tempos em que os maranos eram obri- gados a reunir-se em esconderijos, por vezes subterrâneos, na noite de Kipur começavam por recitá-lo fazendo portanto a anulação de votos: "Todos os votos que fizemos, todos os compromissos que tomámos, todos os ju- ramentos que pronunciámos, todas as in- terjeições que nos ímpusemos, todos os anatemas que sôbre nós lançámos, seja qual fôr a sua forma, desde o último dia de Kipur até ao presente dia de Perdão, chegado para nós em paz, são declarados sem valor e devem ser considerados abso- lutamente nulos". Era assim que os nossos antepassados, maranos, se desligavam de tudo quanto eram forçados a fazer por ocasião do ba- tismo cristão a que eram violentados pela sangrenta Inquisição. Os sons musicais do Kol Nidré são, sob este ponto de vista, bem mais elo- qüentes do que nós. Ouvindo-o sente-se o choro daqueles almas doridas repizadas e vexadas. E bem uma tragédia humana em que homens são forçados por outros homens, seus inimigos figadais, a fazer o triplo sacrifício de adorar publicamente aquilo que detestavam, demonstrar ami- zade e dedicação àquêles que eram os seus tiranos e romper as brilhantes tra- dições, que através os séculos, os ligavarn aos seus irmãos perseguidos e, como eles, martirizados. Foi a esses irmãos desapa- recidos que o marano D. Manoel se quez ligar e quez ligar os seus correligionários para toda a eternidade. E assim foi. Lá estão êles ainda e sem- pre aterrorizados nas sertanejas aldeias de Traz-os-Montes e Beiras sobretudo. Ouvindo o Kol Nidré vai-se desenro- lando a conhecida tragédia que se nos de- para sempre que voltamos as costas e con- templamos o passado. E, vista a frio, é simples essa tragédia: "Um subterrâneo palidamente ilumi- nado. Os sons do mesmo Kol Nidrê que se vão elevando gradualmente. As vozes sofocantes e cheias de terror ao verem que os esbirros os assaltam. O tinir dos fer- ros que lhe prendem as mãos. A marcha rápida e forçada para as masmorras da inquisição. Os suspiros de desalento dos encarcerados. As ásperas vozes dos in- quisidores. Gemidos e gritos provocados pelas torturas com que lhe arrancam de- clarações. A marcha lenta e solene para as fogueiras. As promessas de salvação se se arrependessem de tudo quanto ha- viam feito. Vozes ásperas. Os sons do Shema e, finalmente, o rugir das multidões e o crepitar das chamas". NORBERTO A. MORÊNO ---------------------------------------- Visado pela Comissão de Censura
N.º 077, Heshvan-Kieslev 5697 (Out-Nov 1936)
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