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N.º 151, Shevat-Tamuz 5713 (Jan-Jun 1953)







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 2          HA-LAPID
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        RAPSÓDIA EM SAUDADE

Acabamos de falar, espiritualmente, com
ele, com Uriel da Costa, esse pensador
complexo que, segundo Darff e Pierre
Kaan, "viveu profundamente e com grande
paixão as duas maneiras porque a Huma-
nidade tem interpretado o seu destino...
uma pela qual ela tenta colocar-se com
toda a lucidez em frente de si mesma, a
outra em que ela ousa julgar o seu nada
pela presença infinita, esmagadora, de
Deus".

Representado por publicações que falam
de si, e por trabalhos que o seu génio
concebeu, tívemo-lo, durante alguns mo-
mentos, em contacto connosco, depois de
o arrancarmos da estante desarrumada.
Através da arte de Gutenberg, revimos,
em imaginação, a vida de Uriel da Costa;
assistimos ao seu nascimento, ali em Cedo-
feita; acompanhamo-lo, quando estudante
de Cânones em Coimbra, nos bancos da
velha Universidade; estivemos com ele,
quando íá formado em direito canónico,
na Colegiada de Cedofeita; compartilhamos
das suas inquietações que o levaram a
abandonar o País; vimo-lo na Holanda,
onde com toda a familia fez a sua pro-
fissão de fé judaica, e revoltamo-nos ao
assistirmos à maneira vil como Uriel
é tratado pelos seus correligionários de
Holanda.

Acompanhamo-lo no seu novo êxodo
para Hamburgo e arrepiamo-nos ao vê-lo
escrever essa carta patética, impressio-
nante, que intitulou--Exemplar Humanas
Vitae, na qual descreve a tragédia da sua
consciência.

Vemo-lo no seu gabinete, bem mobi-
lado, sentado numa cadeira de espaldarV
tendo diante de si um in-fólio. Pela sua
atitude depreendemos que faz contas com
a vida. Curvado, alquebrado, fixa alguma
coisa de invisível. Nem sequer ouve o
que diz o pequenito de cabelo louro, que
colocado nos seus joelhos, se encosta ao
ombro. É Espinosa, sobrinho de Uriel;
Com a mão direira, a criança toca numas
flores frescas que formara na mesa. Da
esquerda escorregam outras já meias mur-
chas. Nessas talvez incida o olhar vago e
desesperado de Uriel. E o pequeno de

 

cabelo anelado, recitou os seus conceitos
relativos às flores, conceitos espiritualmente
gongóricos como os de Ledesma:

"Sabeis, tio, como distingo as flores
frescas, direitinhas nas suas pequenas hastes,
destas já ressequidas ? As frescas são ideias,
as outras conceitos. Naquelas é o criador
que pensa. Nestas é o homem que percebe.
E como a diferença está apenas no perfume
e na fresca cor, isto é, na vida, eu chamo
"Deus, Vida e Ser. E sem essa Vida, esse
Ser, as flores que murcharam já não são
flores. São meros conceitos, nada mais".

Momentos depois Uriel põe termo à
vida. Assistimos ainda à sua agonia e,
por fim, acompanhamo-lo à última morada
-onde poucos o levaram e deixaram com
sincera e profunda sinceridade.

                  *
                *   *

Apesar do nome de Uriel ter atraves-
sado fronteiras e se ter firmado no estran-
geiro, foi lançado pelos seus compatriotas
na vala comum do esquecimento.

Ainda que se não possa considerar
Uriel um grande filósofo ou um profundo
teólogo, a sua obra tem contudo traços
curiosíssimos que levaram os críticos a
afirmar que este ilustre portuense foi sem
dúvida, em mais de um passo, o inspirador
de Baruch Espinosa.

Português, afidalgado pela fortuna e
pela educação, nascido no Porto, segundo
alguns autores, em 1584 era Uriel da Costa.
filho de cristãos-novos. Formado em Di-
reito Canóuíco, óptimo latinista, familia-
rizado com as obras-primas do paganismo
mas também do renascimento, Uriel tinha
alma profundamente religiosa, e coração
bondoso, isento de egoismos. De tempe-
ramento apaixonado. impulsivo, mas de
mentalidade racionalista, incapaz de con-
servar e deixar amadurecer de vagar, no
foro íntimo do seu peito, as suas convic-
ções e fantasias. Sério e sincero, vemo-lo
sempre disposto a confessar, sem reservas,
ficção ou mentira, tanto as hesitações da
sua consciência como as dúvidas da sua


 
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