2 HA-LAPID ======================================= RAPSÓDIA EM SAUDADE Acabamos de falar, espiritualmente, com ele, com Uriel da Costa, esse pensador complexo que, segundo Darff e Pierre Kaan, "viveu profundamente e com grande paixão as duas maneiras porque a Huma- nidade tem interpretado o seu destino... uma pela qual ela tenta colocar-se com toda a lucidez em frente de si mesma, a outra em que ela ousa julgar o seu nada pela presença infinita, esmagadora, de Deus". Representado por publicações que falam de si, e por trabalhos que o seu génio concebeu, tívemo-lo, durante alguns mo- mentos, em contacto connosco, depois de o arrancarmos da estante desarrumada. Através da arte de Gutenberg, revimos, em imaginação, a vida de Uriel da Costa; assistimos ao seu nascimento, ali em Cedo- feita; acompanhamo-lo, quando estudante de Cânones em Coimbra, nos bancos da velha Universidade; estivemos com ele, quando íá formado em direito canónico, na Colegiada de Cedofeita; compartilhamos das suas inquietações que o levaram a abandonar o País; vimo-lo na Holanda, onde com toda a familia fez a sua pro- fissão de fé judaica, e revoltamo-nos ao assistirmos à maneira vil como Uriel é tratado pelos seus correligionários de Holanda. Acompanhamo-lo no seu novo êxodo para Hamburgo e arrepiamo-nos ao vê-lo escrever essa carta patética, impressio- nante, que intitulou--Exemplar Humanas Vitae, na qual descreve a tragédia da sua consciência. Vemo-lo no seu gabinete, bem mobi- lado, sentado numa cadeira de espaldarV tendo diante de si um in-fólio. Pela sua atitude depreendemos que faz contas com a vida. Curvado, alquebrado, fixa alguma coisa de invisível. Nem sequer ouve o que diz o pequenito de cabelo louro, que colocado nos seus joelhos, se encosta ao ombro. É Espinosa, sobrinho de Uriel; Com a mão direira, a criança toca numas flores frescas que formara na mesa. Da esquerda escorregam outras já meias mur- chas. Nessas talvez incida o olhar vago e desesperado de Uriel. E o pequeno de cabelo anelado, recitou os seus conceitos relativos às flores, conceitos espiritualmente gongóricos como os de Ledesma: "Sabeis, tio, como distingo as flores frescas, direitinhas nas suas pequenas hastes, destas já ressequidas ? As frescas são ideias, as outras conceitos. Naquelas é o criador que pensa. Nestas é o homem que percebe. E como a diferença está apenas no perfume e na fresca cor, isto é, na vida, eu chamo "Deus, Vida e Ser. E sem essa Vida, esse Ser, as flores que murcharam já não são flores. São meros conceitos, nada mais". Momentos depois Uriel põe termo à vida. Assistimos ainda à sua agonia e, por fim, acompanhamo-lo à última morada -onde poucos o levaram e deixaram com sincera e profunda sinceridade. * * * Apesar do nome de Uriel ter atraves- sado fronteiras e se ter firmado no estran- geiro, foi lançado pelos seus compatriotas na vala comum do esquecimento. Ainda que se não possa considerar Uriel um grande filósofo ou um profundo teólogo, a sua obra tem contudo traços curiosíssimos que levaram os críticos a afirmar que este ilustre portuense foi sem dúvida, em mais de um passo, o inspirador de Baruch Espinosa. Português, afidalgado pela fortuna e pela educação, nascido no Porto, segundo alguns autores, em 1584 era Uriel da Costa. filho de cristãos-novos. Formado em Di- reito Canóuíco, óptimo latinista, familia- rizado com as obras-primas do paganismo mas também do renascimento, Uriel tinha alma profundamente religiosa, e coração bondoso, isento de egoismos. De tempe- ramento apaixonado. impulsivo, mas de mentalidade racionalista, incapaz de con- servar e deixar amadurecer de vagar, no foro íntimo do seu peito, as suas convic- ções e fantasias. Sério e sincero, vemo-lo sempre disposto a confessar, sem reservas, ficção ou mentira, tanto as hesitações da sua consciência como as dúvidas da sua
N.º 151, Shevat-Tamuz 5713 (Jan-Jun 1953)
> P02